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A MORTE COMO QUESTÃO PSICANALÍTICA

Atualizado: 15 de dez. de 2019

1.


O ser humano é um fato existencial que se desenvolve entre o instante do nascimento e o desfecho da morte. Entre um e outro acontecimento manifesta-se a vida, e não a vida como algo genérico, mas sim como a história específica de cada indivíduo. Portanto, quando nos referimos à morte, não estamos tratando apenas de um conceito abstrato de teor muito frequentemente filosófico; trata-se, na realidade, de uma questão bastante particular cuja simples menção costuma despertar nas pessoas conflitos e preocupações. Mesmo que evitemos tratar conscientemente do assunto, é impossível ignorar a influência da morte no âmbito da realidade física, afinal, constatamos com frequência que se ela não nos toca de modo peculiar, determina o destino de muitos daqueles com os quais tivemos a oportunidade de conviver. Pretender evitá-la a todo custo revela-se tarefa inglória, porque ainda que nos esquivemos temporariamente de sua chegada, a morte desnuda seu semblante macabro na fatuidade das coisas materiais. Sendo um tema tão fundamental, correlato a todas as formas humanas de cultura, manifesto em obras da literatura universal, seria mesmo desejável que a psicanálise, como ramo do conhecimento, a isso dedicasse atenção estabelecendo teorias e conceitos como, por exemplo, thanatos e pulsão de morte. Obviamente, aos estudos psicanalíticos não interessam somente aa consequências filosóficas dessa temática, mas sobretudo o modo como a psique costuma reagir à sombra perturbadora da morte como realidade.

Há dois fatores que necessitam ser considerados atualmente acerca desse assunto, fatores muito característicos dos tempos atuais que tornam o confronto com a morte algo bastante difícil de ser deglutido. Refiro-me ao elogio da juventude, tão marcante em nossa cultura, bem como também à distração dos entretenimentos. Somos continuamente bombardeados por slogans propagandísticos que transformam a juventude não somente em ideal de comportamento, mas, de maneira semelhante, em modelo de aparência a ser cultivado e eternizado. Sendo assim, estimula-se nos indivíduos a ânsia de conservar a existência em uma espécie de tempo paralisado, como se o fluir natural das coisas não redundasse terrivelmente em decrepitude. São métodos de tratamentos estéticos, técnicas de cirurgia plástica, estilos de vestuário, e até mesmo programas de computador que, se não mantém a aparência juvenil da pessoa em termos de realidade, forjam imagens que causam nas demais pessoas certas impressões. Quanto à distração dos entretenimentos, manifesta-se não só nos meios de comunicação tradicionais dos tempos modernos, ou seja, rádio e televisão, mas em outros meios também, como o cinema e, atualmente, sobretudo a internet. Somos continuamente atraídos pelo conteúdo neles encontrado, e na medida em que imergimos na ficção ou talvez na virtualidade desses universos tecnológicos, distanciamo-nos da realidade cotidiana, encontrando a possibilidade de fugir das questões existências relevantes. O contato recorrente com essas distrações obnubila o estado normal de nossa consciência, realçando aspectos demasiadamente superficiais, e adormecendo demandas de maior profundidade.

O romancista norte-americano Don Delillo evoca essa mesma questão profundamente moderna em sua obra Ruído Branco, cujo enredo desenvolve-se em torno de uma família de classe média e bom nível intelectual que se descobre perseguida pelo espectro da morte manifesto inicialmente em uma nuvem tóxica causada pelo acidente em uma usina nuclear. Fugindo desesperadamente da contaminação radioativa, os personagens descobrem que não é possível esquivar-se daquele espectro de maneira indefinida, e a trama desenrola-se, então, tendo como centro o esforço psicológico dos indivíduos envolvidos no intuito de recuperar a situação confortável de viverem mergulhados em um estado de relativo entorpecimento da consciência capaz de camuflar a realidade da morte. Para isso, buscam constantemente o refúgio das atrações televisivas como método de conservar a mente distraída, esquecendo-se do perigo a que se expuseram. Porém, ainda isso não se revela o suficiente, porque a ansiedade corrói os indivíduos devido ao fato de ser necessário conviver com a perspectiva de uma infestação radioativa, e esses se deixam seduzir por soluções supostamente medicinais cujos efeitos, conquanto sejam psicológicos, oferecem certa tranquilidade provisória. O enredo de Don DeLillo demonstra suficientemente bem a dificuldade com que as pessoas em nossa sociedade moderna – sociedade do entretenimento – têm de encarar a morte, e como se refugiam desesperadamente em distrações que, conquanto camuflem a fatuidade das coisas, não são suficientes para funcionar de modo indefinido.

Quando Sigmund Freud estabelece conceitos fundamentais como pulsão de vida e pulsão de morte, tenciona assim demonstrar a existência de dois impulsos que se antagonizam na psique dos indivíduos, embora sejam dependentes, ao mesmo tempo, uma vez que vida e morte – princípio e termo da vida natural – são fases necessárias do mesmo fenômeno. São também as duas certezas mais vigorosas da existência: solo es real la vida, solo es real na muerta, escreveu Dom Luís de Góngora. Se os seres humanos respiram, alimentam-se, interagem, copulam, divertem-se, cumprem suas obrigações civis e religiosas, certamente é porque existe a realidade pulsante da vida, mesmo que as pessoas não a tornem fato consciente com frequência. Sem dúvida, em perspectiva bastante prática, viver consiste em algo absorvente, e geralmente refletir sobre sua trama complexa ou a respeito de sua fragilidade não parece sedutor. Mas, às vezes, a tragicidade da existência humana recorda-nos que existe a finitude, que não estamos em situação de eternidade, e então a realidade da morte assombra-nos como um espectro paralisante. Os pragmáticos talvez encarem a morte com a resignação e a naturalidade dos estoicos, entretanto, o temor deve ser encarado também como um sentimento natural, desde que não seja exacerbado. O receio moderado de expirar definitivamente significa atribuir à existência humana um apreço condizente, pois aqueles que desprezam a vida, buscando morbidamente o contrário, estão influenciados pela pulsão da morte. O conceito estabelecido por Freud refere-se ao desejo de aniquilamento que se encontra nos indivíduos – com mais ou menos intensidade –, manifestando-se geralmente no suicídio ou na vontade de morrer dos depressivos que se demonstra em pensamento sem necessariamente redundar em atitude.

Pode-se encarar a morte nos meios de comunicação como elemento dissociado dos problemas cotidianos, talvez à semelhança de algum fator histórico cuja existência não afete exatamente os indivíduos, contudo, essa situação é meramente ilusória, e a morte como fator determinante, em dado momento, desfaz a ilusão. Em Ruído Branco, os personagens conseguem instruir-se acerca do holocausto causado pelos nazistas através de programas televisivos e debater o assunto sem que a morte necessariamente os espreite. Parece que, então, a tragédia tornou-se palatável e, consequentemente, assimilável por centenas de estudos acadêmicos que amortizaram seu perigo real, transformando-a em objeto de estudo. Tudo aquilo que existe de irracional na morte e, sobretudo, nesse acontecimento histórico de um genocídio, acaba sendo decantado pelo trabalho intelectual, e oferecido ao público de modo inofensivo. Ora, existem duas dimensões da questão a respeito da morte no trabalho de Don DeLillo: esta realidade dissecada pelos estudos acadêmicos e apresentada em programas de televisão e outra realidade demasiado próxima e exasperante que se manifesta na contaminação radioativa. Se a primeira é atualmente inofensiva – conquanto em perspectiva histórica o holocausto tenha sido mais destrutivo –, a segunda revela-se assustadora. Pode-se deduzir disso que, na medida em que a morte é racionalizada, consequentemente se dilui bastante seu poder sobre a consciência das pessoas, isso significando, em contrapartida, a profundidade irracional do medo atuando sobre os indivíduos no momento em que a morte não se demonstra somente temática de pesquisa histórica, mas um risco iminente.

Deve-se igualmente considerar que a apologia da juventude tão característica dos tempos atuais – conforme citado antes – constrói certo estado de consciência no qual se acredita na perpetuação do momento presente. Quando jovens, em geral estamos convictos da saúde corporal e das inúmeras possibilidades que o futuro oferece. Isso naturalmente nos conserva apegados à vida em seu estado vibrante, e torna a morte uma situação distante da realidade, ou apenas existente como circunstância longínqua. Pensamos que a velhice, essa constatação gradual da decrepitude física, não nos atingirá facilmente, mas na medida em que começam a surgir os vestígios do envelhecimento, somos então confrontados com o fato da passagem dos anos e também desse fim indesejado do qual não podemos escapar. Os que não assumem a atitude pragmática de compreender quão inevitável é esse transcorrer natural das coisas e o consequentemente fim, costumam encontrar diversos subterfúgios no intuito de preservar a ilusão do tempo presente. Foge-se desesperadamente do real e, entretanto, não de modo ininterrupto, sendo assim, é necessário encarar o fato inevitável se o que desejamos é conservar o equilíbrio.


2.


Dentro do ambiente psicanalítico, no decorrer das sessões, abordar a questão da morte talvez se mostre delicado. Obviamente se sugere que o psicanalista aguarde, em geral, que o paciente traga essa questão como demanda, seja devido ao sofrimento do luto ou então motivado pelo receio exagerado de morrer. Quando isso acontece, existe a dificuldade de encarar tal fato no sentido da conviver saudavelmente com a perda ou admitir que, embora exista a fatuidade da vida, não se deve viver atormentado por temores. São situações em que o tema é experimentado como trauma, e o sofrimento deve ser, desse modo, aliviado através da análise das razões fundamentais do sentimento de perda ou do sintoma fóbico. O luto coloca os indivíduos em contato com circunstâncias naturais de característica ancestral, porque desde os primórdios da história os seres humanos foram repetidamente confrontados com a morte de seus antepassados, e esforçaram-se no sentido de assimilar o desaparecimento dos entes queridos através de ritos e cultos cuja finalidade significava exatamente justificar a existência de uma realidade sombria pós morte, evocando assim a memória desses antepassados. Se antigamente havia a ritualística religiosa que tornava a passagem mais aceitável psicologicamente, na época atual a cultura dessacralizada, sobretudo no ocidente, tornou a vivência da morte algo mais traumático e doloroso. O mesmo devemos afirmar a respeito das dificuldades de admitir a morte como fim consequente da existência humana. Conforme a sociedade moderna se distanciou dos ritos necessários ao fenômeno da morte, também as pessoas se distanciaram paulatinamente do convívio com essa realidade tão desagradável.

Porém, a dificuldade que a temática oferece não deve constranger o psicanalista. No fundo, os indivíduos são mais receptivos do que acreditamos, e ainda que a morte produza em nós certa reação de repulsa, o fato é que existe nessa questão a oportunidade de suscitar reflexões. Pode talvez parecer desnecessário, contudo, é de extrema relevância que a psicanálise ofereça aos pacientes a chance de despertar desse estado de entorpecimento. Quando suscitamos questionamentos do tipo Como você definiria sua experiência pessoal com a realidade da morte, ou então, Você tem o costume de meditar sobre esse assunto ou evita pensar nisso, colocamos habilmente o analisando na situação de encarar tal problema em uma perspectiva reflexiva que, conquanto talvez soe desconfortável no começo, estará sempre segura nas fronteiras científicas da psicanálise. Colocar o assunto no centro do processo analítico com o paciente significa oferecer-lhe a chance de sair do entorpecimento causado pela cultura de entretenimento e, portanto, encarar de forma saudável a finitude da vida.

Outro aspecto relevante acerca da morte, e que deve ser observado e escrutado, consiste na necessidade de entender os aspectos positivos dessa fase natural da existência. A realidade do mundo material se estabelece justamente no ciclo de nascimento e morte de todas as coisas pulsantes, compreendendo-se que nascimento é a manifestação do Eros e morte é a expressão de Thanatos. Sem dúvida, todas as experiências que temos ocorrem entre essas duas fases crucias da existência. Se não houvesse Eros (pulsão de vida), consequentemente não existiria a natureza, e de modo mais específico decerto não existiria o humano, em contrapartida, se não houvesse Thanatos (pulsão de morte), não haveria a renovação de todas as coisas, e a realidade material se fixaria em um presente imutável e monótono. Mesmo sendo indesejada, e ainda que produza sofrimentos psicológicos, a morte é um elemento imprescindível, e reconhecer essa característica liberta-nos dos temores que geralmente nos afligem. Sendo assim, resta-nos questionar que vantagens e desvantagens existiriam na possibilidade quimérica de obter a imortalidade neste mundo, recordando que não me refiro especificamente ao argumento religioso da eternidade, tal como se encontra no cristianismo, ou seja, da vitória em cima da morte, e posterior estado de bem-aventurança no Reino de Deus, mas do desejo de sobreviver às vicissitudes da vida material – doenças, acidentes ou mesmo o envelhecimento –, como um imortal superando as eras históricas. Reside nisso a esperança dos que, sobretudo na Idade Média e no Renascimento, buscavam através da trabalho alquímico atingir não somente a Pedra Filosofal, porém igualmente o Elixir da Longa Vida. Muitos se arrojaram, tentando decifrar textos e figuras herméticas, operando em laboratórios, às vezes improvisados, na tentativa de obter aquilo que os alquimistas chamavam de Grande Obra.

Se nem todos ansiavam atingir tais objetivos motivados por nobres intenções, e se deixavam frequentemente seduzir por sonhos de fortuna, alguns – raríssimos – faziam do estudo e do labor alquímico o caminho de transmutação interior. Porém, como disse, a possibilidade de transformar os metais inferiores em ouro alquímico e sobreviver à passagem dos séculos alimentava a ganância de inúmeros personagens. Para estes, a sabedoria contida nos segredos herméticos e o desenvolvimento espiritual advindo do trabalho silencioso dos adeptos não importavam tanto quanto à conquista de quaisquer vantagens mundanas. Foi baseada nessa história de cobiça e loucura que a escritora francesa Simone de Beauvoir publicou um romance cujo protagonista empenha-se na tarefa de descobrir os segredos alquímicos visando não o conhecimento das coisas celestes, mas sim a obtenção de favorecimento pessoal. Em Todos os Homens São Mortais, o enredo acha-se recheado com histórias de conflitos, revoluções, pestes, bem como desesperadas tentativas de alcançar o objetivo máximo da alquimia. Muitos fracassos se sucedem nesse sentido, até que finalmente Conde Fosca – o personagem principal – depara-se com o Elixir da Longa Vida, e ingerindo, torna-se subitamente imune à força da morte. Desde então, atravessa os séculos acumulando conhecimento e bens materiais e, no entanto, descobre-se entediado, e dessa maneira mergulha em um estado de melancolia e desalento que o faz questionar o sentido da existência humana. Sendo da corrente francesa do existencialismo, Simone de Beauvoir não conduz as reflexões ficcionais a qualquer solução metafísica, não oferece o consolo da religião, e o tédio característico dessa corrente filosófica desagua somente em um vasto oceano de desesperança.

Quando trazemos essa situação ao terreno da psicanálise, e evocamos novamente os conceitos de Eros e Thanatos, encontramos a chance de colocar o paciente na posição daquele que tem raízes existenciais fincadas em sua história, sobretudo familiar. Somos a consequência da formação que recebemos em família – ainda que, em determinado momento, tenhamos a chance de construir com liberdade nossa formação –, e desprovidos desse alicerce, falta-nos certa parcela importante do próprio ser. Se nos fosse possível ultrapassar o tempo natural da vida humana, e sobrevivêssemos aos nossos conhecidos, que terrível solidão provaríamos neste mundo? Como seguir adiante tendo perdido os fundamentos essenciais da existência que se encontram, frequentemente, nesses relacionamentos familiares? Muito daquilo que compreendemos a respeito de nossa própria pessoa acha-se vinculado a essas relações. Pensando assim, a morte decerto se tornará algo menos perturbador na medida em que entendemos certa feição positiva em sua realidade, ou seja, o fato de que, se excepcionalmente nos privássemos dela, estaríamos condenados a um destino semelhante ao do personagem da romancista Simone de Beauvoir. Supor a existência vazia de significado, assim como a apresenta a autora, deveria justificar a compreensão da finitude das coisas não como um fenômeno assustados, mas como algo necessário à natureza humana.

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