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Trechos de Para Ler no Caminho

1. Houve uma ocasião em que o célebre filósofo da cidade foi ao encontro do sábio eremita. Subiu alguns quilômetros na encosta íngreme das montanhas onde habitava o ermitão, e tendo enfim chegado ao topo, admirou-se da bela paisagem. Logo que lhe aconteceu a oportunidade de confabular com o eremita, o filósofo disse:

– Mestre, louvo sobremaneira o modo de existência que escolheu. Observo desta altura a cadeia de montanhas, a vegetação de variadas tonalidades, as cachoeiras que descem dos cumes e formam um rio belíssimo abaixo – de onde consigo escutar, deslumbrado, o cântico rumoroso das águas. Sei agora, testemunhando esse ambiente, que desistir da convivência humana e buscar o contato próximo com a natureza é realmente a melhor escolha. Tudo aquilo que contemplo é bom, e percebo assim como os homens da cidade são maus e egoístas, como estão constantemente inclinados a destruir e a corromper a si mesmos e aos outros em busca de dinheiro e poder.

– Os homens são maus diversas vezes. Contudo, a maldade dos seres humanos ainda não é um motivo suficiente para alguém decidir viver como eremita.

– Qual seria esse motivo, mestre?

– Deus. Se busco a vida isolada nas montanhas e o contato com a natureza é porque desejo ardentemente encontrá-lo em mim e absolutamente em tudo.

– Permita-me dizer, mestre, que na minha visão a natureza é divina, e contemplá-la é a única religião que conheço. Os pássaros, as árvores, aquele rio correndo no sopé das montanhas, nisso tudo deposito tranquilamente a minha fé. Porque sei que tudo isso existe e tudo me contenta.

– Diga-me, caro filósofo, o senhor se considera um deus?

– Claro que não!

– Caso os pássaros, as árvores e aquele rio tivessem a capacidade de refletir, e vendo o filósofo, chegassem à conclusão de que ele é um ser divino, neste caso, os pássaros, as árvores e o rio estariam muito equivocados. Porque o senhor mesmo admite que a si mesmo não se considera um deus. Estou correto?

– Penso que sim.

– Somos todos integrantes da mesma natureza. Seres diferentes, mas oriundos de uma idêntica fonte de realidade. Portanto, se a nossa existência natural não deve ser confundida com a própria divindade, isso também é válido para o restante.

O eremita ainda acrescentou:

– Deus está além e está presente. Ele nos alimenta e nos conforta. Conserva todas as coisas em movimento, do nascer do sol até o seu ocaso. Porém, Ele subsiste independentemente da aparência de todas as coisas.

O homem que se retira para a vida reclusa e não compreende essa verdade fundamental, provavelmente está perdendo seu tempo, disse, encerrando o colóquio.


2. Seguir o itinerário da escrita literária significa aceitar a convivência habitual com a solidão e ter a coragem de violar certas regras aparentemente invioláveis.

O escritor alemão Hermann Hesse era filho de teólogos protestantes conservadores. Quando tinha idade suficiente, foi enviado para o seminário, pois seus progenitores decidiram que ele se tornaria presbítero. Mas um artista como Hesse não se sentia satisfeito no ambiente recluso de um seminário. Havia nele o desejo de saltar os muros e conhecer o mundo.

Foi exatamente isto o que ele fez.

Sozinho na Suíça, Hermann Hesse precisou trabalhar como livreiro e operário. Romper com as escolhas dos familiares não representava somente esquecer a possibilidade de uma carreira eclesiástica. Na realidade, o jovem escritor abdicava também de ter uma formação acadêmica.

Chegou a trabalhar mais de 10 horas diárias como livreiro e operário, e, em seu tempo vago, dedicava-se a estudar e escrever com diligência. Sendo assim, transformou-se em autodidata.

Se não tivesse a coragem de enfrentar a solidão de seu período de anonimato e não ousasse trilhar um caminho bem diferente daquele planejado, Hermann Hesse decerto não escreveria Peter Camenzind, Demian, O Lobo das Estepes e O Jogo das Contas de Vidro, obras magistrais que lhe garantiram o Prêmio Nobel de Literatura décadas depois.

Caso você não aceite enfrentar os mesmos desafios, não penso que seja digno de ostentar o título de escritor. 


3. Batemos persistentemente em diversas portas que se apresentam neste mundo, não obstante, é frequente que as encontremos trancadas. O mundo gaba-se de seguir certo tipo de seleção, e, nesta seleção, o que conta são o status social, a fortuna e o sucesso. Sem tais símbolos, ficamos no escuro e na solidão exterior.

Porém, a entrada que conduz à essência mais íntima de Deus, esta se mantém aberta a todos aqueles que a buscam com sinceridade.

Uns anos atrás, decidi visitar o mosteiro trapista que se estabeleceu no interior do Paraná. Combinei a data da chegada, minha estada na hospedaria, e comprei as passagens. Pretendia utilizar os dias do Carnaval para mergulhar em uma experiência de silêncio e oração contemplativa. Chegando à rodoviária de São Paulo, encontrei-a dominada por uma verdadeira balbúrdia de turistas sufocados pela urgência de embarcar rumo às festas ou ao descanso em alguma das praias do litoral brasileiro.

Demorei quase três horas para subir ao ônibus que me levava a Curitiba. Tão logo conseguimos deixar a rodoviária, percebi que o trânsito na estrada também não facilitaria em nada o objetivo. Havia previsto chegar a Curitiba aproximadamente às seis da manhã, e embarcar noutro ônibus em direção a Campo do Tenente, onde foi construído o mosteiro. Contudo, devido a tantos contratempos, acabei desembarcando ao meio-dia.

O resultado foi o seguinte: tinha perdido o ônibus matutino que me conduziria a Campo do Tenente. A condução seguinte partiria somente ao final da tarde.

O outro ônibus acabou me deixando na estrada, perto de um posto de gasolina, e ali eu peguei carona com um caminhoneiro. Só consegui chegar ao mosteiro trapista às dez horas da noite. Como o ambiente caracteriza-se por ser campestre, não encontrei ali no local senão a claridade da lua e das estrelas. Observando o céu, admirei-o detidamente. Há tempos não testemunhava o firmamento com tanta beleza.

Só preciso agora encontrar a entrada do mosteiro, pensei. Sem isto, dormiria ali mesmo, ao relento.

Sentia-me exausto. De fato, estava em viagem há quase vinte e quatro horas, e naquele momento desejava apenas tomar banho e dormir bastante. No entanto, aquilo que parecia simples, rápido se tornou problemático. Recordei-me que, devido às vigílias que ocorrem na madrugada, os monges trapistas costumam adormecer cedo. Como entraria?

Bati em várias portas. Tentei abri-las girando a maçaneta, porém, nenhuma delas cedeu. Fiquei desconsolado. O céu noturno era absolutamente lindo, mas eu não estava disposto a dormir sobre a relva. Suspirei. Por fim, passados alguns minutos de hesitação, descobri uma pequena porta meio escondida junto ao jardim. Sem outra possibilidade, tentei aquela última esperança. Quase não consegui acreditar quando percebi que ela se encontrava aberta.

Foi a salvação!

Caminhei pelo interior do mosteiro e, em determinado instante, deparei-me com um monge. Fiquei satisfeito, conquanto ele se demonstrasse visivelmente perturbado. Só depois de uma conversa brevíssima, fui entender o motivo de sua perturbação: eu havia invadido a clausura dos monges trapistas. Naquele local, apenas os consagrados têm o direito de entrar. Mas como eu não atinara com o equívoco, irmão Rafael (chamava-se assim) gentilmente me acomodou na hospedaria.

Pensei bastante nesse episódio desde então. Muitos católicos afirmam que a vida monástica representa o coração espiritual da Igreja. Se isto condiz com a verdade, a clausura dos monges é o mais próximo daquilo que nós consideramos ser o coração amoroso de Deus. Pois naquele espaço, envoltos pelo silêncio de uma existência dedicada exclusivamente a Jesus Cristo, os religiosos devem experimentar esse amor de maneira privilegiada.

Havia diversas portas na ocasião, porém, somente aquela que conduzia à intimidade de Deus conservava-se aberta.


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